A nossa aguardente é uma bebida complexa, que merece atenção e respeito. Cachaceiro, não. “Cachacier”
Não
é difícil depararmos com textos dizendo que a cachaça é uma bebida que
não deve nada a nenhuma outra. Há quem clame por menos preconceito e
revele um sentimento ufanista da década de 60, afirmando que a cachaça é
a única bebida genuinamente brasileira; por isso, temos de apreciá-la
em detrimento dos destilados e fermentados “gringos”, e ponto final.
A discussão, via de regra, se perde em
adjetivações nacionalistas e sentimentais, em que os participantes se
esquecem de responder a perguntas básicas, como: Por que a cachaça não
fica a dever a nenhuma outra bebida? Por que ela é especial? Enfim, por
que a cachaça é uma bebida complexa?
Em primeiro lugar, entende-se por destilados complexos os que combinam dois métodos especiais de produção:
1 - Destilação em alambiques de cobre (pot stills)
2 - Maturação em barris de madeira
Diferentemente
dos destiladores industriais — chamados também destiladores de coluna
—, os alambiques de cobre conferem maior corpo, densidade, sabores e
aromas aos destilados. E a maturação em barris confere uma gama ainda
maior dessas desejáveis características ao produto final.
Dos
inúmeros tipos de destilados existentes no mundo, apenas sete são
produzidos pela combinação dos dois processos acima: armagnac, cachaça,
calvado, cognac, rum, tequila e whisky. Sendo que o cognac é destilado
apenas em alambiques de cobre, e a maioria dos armagnacs e calvados
também.
Tudo bem que grande parte das
cachaças, dos runs, das tequilas e dos whiskies são produzidos em larga
escala em destiladores industriais. Mas quando esses destilados provêm
de alambiques de cobre, com posterior maturação em barris, passamos a
falar de bebidas especiais que merecem atenção e respeito.
A
vodka, por exemplo, apesar de ser um destilado apreciado pela
coquetelaria por sua versatilidade e neutralidade, não apresenta
complexidade. Produzi-la é, de fato, muito simples. Basicamente,
destila-se um mosto fermentado de batata, centeio, trigo ou uva em
destiladores industriais, e a bebida já está pronta para consumo.
Alguns
afirmam, equivocadamente, que a complexidade da vodka está em suas
múltiplas destilações. Ora, se destilarmos uma bebida inúmeras vezes
terminamos, no limite, com álcool puro, não é mesmo?
A
complexidade em produzir um destilado não está, portanto, no número de
destilações, mas sim em combinar a destilação em alambiques de cobre com
o posterior envelhecimento em barris, ambos os processos requerendo
técnicas e habilidades especiais de produção.
É
certo que dois destilados se diferenciam dos demais, quanto à
complexidade: o whisky single malt escocês e a cachaça de alambique
(também conhecida como artesanal). Os dois são produzidos em alambiques
de cobre. O primeiro se destaca, ainda, pela enorme variedade de barris
de carvalho que se usam em sua maturação. Encontramos, por exemplo,
single malts escoceses envelhecidos em barris de carvalho que maturaram
previamente vinho jerez, vinho sauternes, vinho do porto, vinho tokaji,
whiskey bourbon e por aí vai.
Já a
cachaça de alambique se beneficia de nossa rica biodiversidade, sendo
envelhecida com bons resultados em diversas madeiras além do carvalho,
como amburana, bálsamo, cerejeira e ipê, entre outras. Até pau-brasil é
usado para envelhecer cachaça!
A
combinação alambique de cobre mais envelhecimento em barris é, portanto,
crucial na produção de uma bebida complexa como a cachaça de alambique.
E podemos citar excelentes exemplares produzidos em nossa terrinha como
as cachaças Anísio Santiago, Salinas, Sapucaia, Vale Verde e Weber
Haus.
Esquecemos os destilados de
alambique de armagnac, calvado, cognac, rum e tequila? Não: trata-se,
sem dúvida, de destilados complexos, mas com pouca variedade em termos
de métodos de envelhecimento. O armagnac, calvado, e cognac são
envelhecidos basicamente em barris de carvalho limousin e tronçais, e o
rum e a tequila em barris de carvalho que maturaram previamente whiskey
americano.
Ainda que reste muito por
fazer em prol do desenvolvimento de cachaças premium, endossamos aqui a
admiração e o valor que merecem as nossas cachaças de alambique. Podemos
até dizer que a palavra “cachaceiro” deixou de ser ofensa, sendo
aprimorada para “cachacier”, a que têm direito os poucos que, realmente,
conhecem e sabem degustar a bebida que é a cara do Brasil.